Texto por Ângelo Ferreira (CIDTFF), no âmbito das comemorações do Dia Mundial da Língua Portuguesa

Defendi no passado dia 24 de março uma tese de doutoramento em Educação, com a orientação do Prof. António Neto Mendes, da Universidade de Aveiro, e do Prof. Onésimo Teotónio Almeida, da Universidade de Brown (Doutor Honoris Causa pela UA), onde se conclui, entre outras coisas, que uma escola aberta em Timor em 1976 foi determinante para salvar a língua portuguesa da extinção naquela (meia) ilha do Sudeste Asiático.

Durante 24 anos, os timorenses resistiram à ocupação indonésia, tendo reconquistado a sua independência três após o referendo de 1999, sob os auspícios da ONU. Além da comprovada violência física e psicológica, o regime indonésio proibiu o uso da língua portuguesa e desencadeou um esforço maciço para indonesiar a sociedade timorense, em particular através do sistema educativo e da imposição da língua indonésia em todos os domínios.

A exceção foi o Externato de São José (ESJ), uma escola que funcionou, a partir de 1976, em língua portuguesa, contra as orientações oficiais indonésias, até ser encerrada em 1992. Menos de um ano após a invasão, dois padres timorenses, percebendo que a violência não seria apenas militar e física, mas também psicológica e cultural, abriram uma escola, o Externato de São José, com o objetivo de manter viva a língua portuguesa e uma cultura mista, que resultou do contacto entre a cultura portuguesa e as culturas timorenses ao longo de séculos.

Logo após a invasão, as autoridades invasoras começaram a implementar mecanismos de indonesiação da sociedade timorense, com transmigrações de populações das ilhas indonésias, com a forte presença militar, com a obrigatoriedade da língua indonésia na administração pública e no ensino, onde se operou a massificação de um sistema educativo assente sobretudo na propagação rápida da bahasa indonesia e dos valores fundadores da “grande República da Indonésia”, o Pancasila. A noção de que a língua e a cultura, para além de mecanismos de comunicação e encontro, são baluartes da identidade cultural de cada povo, da sua soberania e do seu direito à autodeterminação levou os indonésios a proibir a língua portuguesa e a procurar anular os vestígios de uma cultura própria implantada ao longo de séculos.

Contra as imposições indonésias e correndo sérios riscos, Leão da Costa e Domingos da Cunha, apoiados numa comunidade que partilhava os mesmos objetivos, abriram uma escola que ensinava em língua portuguesa e com o currículo português adaptado, por exemplo no que dizia respeito à história e à geografia, já despido da maioria dos assuntos portugueses, ainda que falando do encontro ocorrido no século XVI. Rejeitaram o currículo oficial obrigatório, que era mais restrito e pobre, limitando-se, por exemplo, à língua indonésia e algum inglês – enquanto no Externato se ensinavam várias línguas europeias (inglês, francês, alemão, italiano, latim e grego) –, e à história dos feitos indonésios, sem quaisquer referências a Timor – enquanto no Externato se abordava a história universal, com claro impacte na formação das consciências políticas dos estudantes.

O estudo evidencia que a escola, ao formar, entre 1976 e 1992, uma nova geração que dominava a língua portuguesa com mestria, contribuiu para fortalecer os laços intergeracionais entre os timorenses, aqueles que haviam sido educados antes da invasão, nomeadamente os guerrilheiros que constituíam a Resistência nas montanhas e matas de Timor (a Frente Armada), aqueles que tinham saído do território e na diáspora se foram organizando como Frente Diplomática, e aqueles que agora viviam sob o jugo do invasor, organizando-se mutuamente para lutar, em português, pela preservação da sua identidade, pela sua independência. Afinal, a língua portuguesa não era algo do passado, mas um testemunho forte a união dos timorenses e do seu direito à dignidade, do seu direito à autodeterminação.

Foi talvez por essa razão que os principais movimentos clandestinos que fizeram a ligação efetiva entre a guerrilha e a diáspora ou a comunidade internacional, mas também que levaram a cabo as principais manifestações de descontentamento (manifestação frente ao Papa João Paulo II, manifestação que acabou na violência do Massacre de Santa Cruz) que colocaram a opinião pública mundial a favor da causa timorense, nasceram no Externato de São José.

Em 1992, alguns meses depois do referido massacre no cemitério de Santa Cruz, as autoridades usaram o argumento de que os agitadores contra a Indonésia eram alunos e professores da escola para a fechar.

Mais tarde, depois da independência, os seus antigos professores e estudantes assumiram novamente papéis de relevo, agora na edificação do novo estado-nação, com uma notável ação a favor da língua portuguesa como língua oficial e como língua de ensino.

Pode dizer-se que esta escola foi a quarta frente da Resistência timorense, a Frente Cultural, tendo sido determinante para salvar a língua portuguesa em Timor-Leste.