Hélène de Beauvoir em Portugal durante os anos 1940/1945

Maio de 1940. A França acaba de ser invadida pela Alemanha. As fronteiras já se encontram fechadas, mas Hélène de Beauvoir não sabe ainda que a visita a Lionel de Roulet, combinada para ser apenas de um mês, em terra lusa, prolongar-se-á por mais cinco anos.
Acaba de chegar de comboio a Lisboa, uma cidade “branca, bela e agradável” (I), que a inspirará em alguns dos seus quadros. Os seus trinta anos trazem consigo uma jovem carreira de pintora passada em Paris que, a partir de agora, terá de adaptar-se a um novo contexto pictórico.

Ruma para Faro, ao encontro de Lionel, ainda debilitado pela tuberculose, com quem, dois
anos mais tarde, casará. Esta cidade de acolhimento será descrita em 1945, pela sua irmã, Simone de Beauvoir, como “ …uma terra de cores africanas, florida de mimosas e eriçada de agaves, falésias abruptas chocando com um oceano tranquilizado pela doçura do céu, aldeias caiadas de branco, igrejas de um barroco mais circunspecto que o de Espanha” (II). Hélène também assim a concebe, tirando dessa policromia a inspiração para tingir de vida o retrato de um quotidiano rural e encontrar uma nova luz “…tão diferente de l’Ile de France” (III).
À chegada, aguardavam-na a família de Lionel. A mãe, Hélène Laure de Coninck, e o padrastro, Carlos Filipe Porfírio. Figura já conhecida na sociedade farense e bem relacionada com o mundo das artes, Carlos Porfírio morara em Paris e fora frequentador da plêiade de artistas do então inspirador “quartier de Montparnasse”. Durante um mês Hélène morou na casa do pintor, na Rua Reitor Teixeira Guedes, n.º71, em Vila Pinta, em Faro.

Fig. 1 – Primeira morada de Hélene de Beauvoir, situada em Faro.

 Contudo, segundo Hélène essa experiência não os aproximou, tornando o relacionamento entre ela e o pintor frio e de curta duração.

Passado um mês, Hélène muda-se para uma casa que considerava “charmante”, e cujo grande pátio, rodeado por muros altos caiados, era adornado de flores. A sua proprietária, já de certa idade, costumava aí lavar e estender a roupa. O quadro “Portugaise lavant son linge dans la cour” (Fig. 2), pintado em Faro e datado de 1942, retrata uma mulher a lavar a roupa num pátio com muros caiados, onde contiguamente ao lavadouro existia um galinheiro e algumas floreiras térreas. A similaridade entre o relato de Hélène, em “Souvenirs” (IV), e a cena pintada naquele quadro, leva a considerar a possibilidade da pintora ter caracterizado a proprietária da sua casa em plenas tarefas domésticas.

Fig.2 – Portugaise lavant son linge dans la cour, 1942.

Com o apoio de Lionel, então diretor da delegação do Instituto Francês em Faro, atual Alliance Française do Algarve (V), Hélène não perdeu tempo em encontrar aí o seu primeiro emprego, lecionando umas horas de francês.

Fig.3 – Cerimónia de enceramento de fim de ano, distribuição de prémios e galardões aos alunos do Instituto Francês, a 6 de Junho de 1943. De pé, ao centro, segunda fila, Hélène de Beauvoir (retirado de catálogo de exposição Hélène de Beauvoir, Faro 1940-1944, Museu Municipal de Faro).

Ao mesmo tempo, Lionel de Roulet mantinha contacto com influentes intelectuais algarvios, opositores ao regime salazarista. A revista luso-francesa “Afinidades” pode assim surgir, em Setembro 1942, com os seus contributos, assim como o de Hélène, que publicou alguns artigos sobre arte e pintura (VI). Sediada na Rua Ataíde de Oliveira em Faro, a revista “Afinidades” teve Lionel como seu redator, e recebido a colaboração de grandes intelectuais portugueses e franceses como Francisco Fernandes Lopes, Cândido Guerreiro, Abel Salazar (Fig.4), André Gide, Moisés Amzalak, Paul Teyssier, Adolfo Casais Monteiro, Mário Dionísio, Albert Camus (Fig.5), Saint-Exupéry (Fig.6), Joel Serrão, Manuel da Fonseca, André Malraux e, mais tarde também de Simone de Beauvoir.

Hélène mantinha-se entusiasta perante esses círculos privilegiados de fusão intercultural entre  França e Portugal, com os quais, dizia ela, se sentia mais próxima dos seres humanos, fossem eles quem fossem, viessem de onde viessem, nenhuma fronteira os poderia separar.  Assim, o testemunha José João da Ponte e Castro, ex-aluno de Hélène de Beauvoir, na época com 14 anos. Conhecera a pintora enquanto professora de francês, em Loulé, na já extinta Sociedade Recreativa Artística Louletana. José João da Ponte e Castro traça-lhe um perfil “elegante” e sublinha também o fino trato e carinho com que tratava os seus alunos. Para além das aulas, Hélène fora, durante dois anos, preceptora de Maria Josefa, atual esposa do ex cônsul britânico de Portimão, Dr. Pearce de Azevedo, neto de Teixeira Gomes, sétimo presidente da República Portuguesa.

Essa intensa atividade lectiva não a impedia, contudo, de se dedicar à pintura! Todos os dias, à tarde, depois das aulas, dadas também no liceu João de Deus de Faro, atual Escola
Secundária João de Deus desta mesma cidade, ela encontrava tempo para se dedicar, a colorir cenas quotidianas de um Algarve provinciano.
Hélène desvendou com uma nova luminosidade e novas cores, até então desconhecidas na sua paleta, a realidade social, denunciando o duro trabalho do povo (Fig. 7), a expressividade de um rosto sofrido (Fig. 8), o pesado calor de uma tarde de estio. A pintora trabalhava sem superficialidade, conservando a essência, tanto das cenas como das tonalidades, denunciando visualmente, através do seu trabalho, a submissão da pacata “terceira sociedade”. Simone de Beauvoir reforçou esse pensamento quando a veio visitar em 1945: (…) De longe a longe avistava grupos de homens e mulheres curvados para o solo, que sachavam num movimento ritmado: vermelhas, azuis, amarelas, laranja, as roupas brilhavam ao sol. Mas já não me deixava iludir; havia uma palavra que começava a medir o peso: a fome. Sob os tecidos coloridos, aquelas pessoas tinham fome; andavam descalças, cara fechada; e nas aldeias falsamente graciosas, reparei nos seus olhares hebetados; debaixo do sol esmagador, queimava-os um desespero selvagem».

Apesar da mensagem sobressair, pondo a descoberto outra imagem que não a de um país que o Estado Novo queria como arquétipo de refúgio idílico, a crítica teceu grandes elogios à pintura de Hélène.

Do espólio cedido, pela pintora à Universidade de Aveiro, constam trabalhos do ano em que chega a Portugal, todos alusivos à vila de Albufeira. A representação de barcos atracados e de pescadores atarefados, ora nas cargas e descargas, ora no cerzir das redes, são tema recorrente, e continuam em 1941, em mais telas. Esse ano irá ser passado essencialmente no Algarve, entre Faro e Albufeira, e aproveitá-lo-á para enriquecer o seu trabalho com cenas intensas, passadas em feiras e nas fainas árduas das ceifas. Os inúmeros esboços recolhidos a observar animais de lavoura (Fig.9), mulheres e homens ocupados, gozando uma sesta merecida (Fig. 11) ou expressando regozijadamente a sua hora da merenda (fig. 10) e até crianças a brincar no campo evidenciam uma artista apaixonada pela vida e pelo pormenor que marca a diferença.

Hélène não esquece a mulher portuguesa. Em toda a sua obra, e assumi-lo-á mais tarde enquanto pintora feminista, dá-lhe destaque, como elemento central da sociedade. Vemo-la nas salinas, a transportar o sal, nas feiras, a negociar as melancias e os potes de barro, nas ceifas a apoiar os homens, em casa a tratar da roupa, sem deixar de cuidar dos filhos. Ela é o motor que impulsiona a economia local, o lar, a faina diária.
A forma como incorpora a mulher na paisagem, nomeadamente, nas salinas, evidencia uma ligação entre a figura feminina e os elementos físicos da natureza: água, céu e terra, sem perder a difusão de um conjunto de ofícios da época. Ao visitarmos a obra de Hélène deparamo-nos com uma “reportagem” alusiva ao quotidiano português da primeira metade da década de 40. O ano não passará contudo sem a triste notícia do falecimento do pai. Hélène vive a perda familiar ao lado de Lionel, o qual, estreitando proximidades, acabará por pedi-la em casamento, no ano seguinte, na praia da Senhora da Rocha, perto de Albufeira. Os trabalhos produzidos durante os meses seguintes mostram que Hélène não ficou indiferente à beleza da paisagem do local. Pinta o que denominou de ”aliança entre a Bretanha e a Côte d’Azur” (VII), colorindo as suas telas com o magnífico promontório da Senhora da Rocha e a sua capela branca, as praias de “um mar verde esmeralda” e alguns edifícios emblemáticos da vila.
Em Leiria, a estadia de um mês, a convite das entidades municipais, produziu também algumas obras de cunho urbano e sobretudo numerosos esboços. Mas Hélène não se resumiu apenas a produzir paisagens. Nesse ano de 1942, pinta retratos, nomeadamente de mulheres, de diferentes estratos sociais, evidenciando em algumas, a sua típica indumentária regional.
Hélène apreciava e respeitava a diversidade cultural elevando a representação plástica à própria experiência pessoal. Fotografias mostram-na, em Leiria, levando uma bilha de água à cabeça, trajada com um fato de camponesa.

Fig. 12 - Hélène de Beauvoir, trajada de camponesa, Leiria, 1942.

Fig. 12 – Hélène de Beauvoir, trajada de camponesa, Leiria, 1942.

As memórias serão finalmente marcadas pelo seu casamento civil, em Lisboa, na embaixada de França. Será esta cidade onde acabará por residir no ano seguinte, devido a questões profissionais de Lionel.
Hélène sente-se feliz por deixar Faro. Precisa de novos ares, outros cenários para vivificar a inspiração. E é certo que com a partida para Lisboa terá oportunidade de se aproximar e de percorrer o centro do país. Lousã, Tomar, Nazaré, São Pedro de Moel, Leiria e Coimbra são alguns dos locais representados em telas e aguarelas, datadas desse ano. Hélène não para de pintar e todas aquelas visitas contribuirão para fomentar uma nova remessa de trabalhos.
Na realidade, e até à data, a pintora terá criado mais de metade das 100 telas que produziu em Portugal. As mesmas constarão, a 20 de fevereiro, de uma exposição sobre cenas pintadas no Algarve e sobre a sua passagem por Leiria. No Secretariado de Propaganda Nacional, atual Palácio Foz (VIII) onde funcionam, entre outros, serviços dependentes da administração central, a crítica tece grandes elogios sobre o seu trabalho. As opiniões são unanimes: há o respeito pela técnica e pelo ensinamento dos grandes mestres clássicos que ela tanto admira, o perfeito equilíbrio advindo das cores e o banho de luz difundido sobre todos os elementos plásticos.
Nesse mesmo ano e local, Hélène alargará o leque de relacionamentos. Conhecerá o internacional escultor português Canto da Maia, que a convidará pessoalmente, para a inauguração da sua exposição.

Fig.13 – Canta da Maia

Fig. 14 – Baiser. Rosto da exposição de Canto da Maia. Obra atualmente exposta no Museu Soares dos Reis, Porto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em Lisboa, instala o seu atelier no número 126, do rés-do-chão Esquerdo, da Avenida Duque de Loulé, num imóvel do início do séc. XX e que atualmente se encontra em demolição (fig.15) e opta também por aí dar aulas particulares de desenho, pintura e gravura.

Fig. 15 – Imóvel onde residiu Hélène de Beauvoir, durante os anos 1943 e 1945, em Lisboa (atualmente em demolição).

Novos desafios despontam para a pintora que até aí trabalhara sobretudo paisagens e cenas do quotidiano português. Próxima de escolas e academias de pinturas, Hélène vê uma oportunidade para retomar os esboços de nus, como o fazia, em tempos, na Academia de la Grande Chaumiére, em Paris. Terá para isso de passar por algumas peripécias, nomeadamente pela dificuldade de encontrar modelos para posar e pelos preconceitos de uma sociedade ainda demasiadamente sexista.
O frenesim artístico não se reduziu apenas às actividades de Hélène. Lionel recebia nesse
apartamento toda a correspondência, logo também a visita de figuras ligadas à literatura e às artes, que permitiram celebrizar a revista “Afinidades”. O poeta Paul Éluar e o escritor Antoine Saint-Exupéry foram dois dos muitos que contribuíram, nesse ano, para a produção da revista luso-francesa.
O ano 1944 anunciava o princípio do fim da Guerra. Em Lisboa, Hélène e Lionel estavam ávidos de notícias contudo a rotina não podia ser quebrada. O semanário “O Globo” dirigido por Lionel, e a revista “Afinidades” necessitavam de constante disponibilidade da sua parte e Hélène apostava, para além de óleos, também agora em aguarelas. Uma rentrée, em Paris, poderia considerar-se possível perante um cenário de pós-guerra. Nesse caso, teria de ter obras para apresentar. Continuou a pintar nus e cenas da vida quotidiana passadas, nomeadamente, em Lisboa e na Lousã coloriu paisagens montanhosas manchadas de vegetação, ora povoadas de casas de xisto ora branqueada com a torre da igreja da vila.
A praia de Galapos, perto de Setúbal, foi também modelo para algumas das suas telas, tendo, representado sobretudo o local, onde, em Agosto 1944, Hélène soube da libertação de Paris pelos aliados.
O fim da guerra avizinhava-se e, com ela, a contagem para o tão aguardado regresso. Será
necessário esperar mais um ano para tal acontecer, mas não antes abraçar pessoalmente a
sua irmã. Na realidade, Simone de Beauvoir será convidada, em Março de 1945, pelo Instituto Francês de Lisboa, para dar um conjunto de conferências, em Portugal, sobre a vida durante a Ocupação da França pelo III Reich. A experiência trazida por Simone sobre os locais visitados em Portugal, não foi dos melhores. Em “Les Mandarins”, expressa claramente a visão de 8 pobreza extrema vivida pelo povo, a qual Salazar queria a todo o custo omitir para o exterior.
Hélène, da mesma forma e aquando o seu regresso a Paris, expõe na Galerie Jeanne Castel, um conjunto das muitas cenas do quotidiano e paisagens pintadas em Portugal. Nelas põe a nú a ruralidade e integralidade da vida do povo.
Não voltará a olhar para esses quadros tão cedo. Eles ficarão omissos no seu atelier em Goxwiller, na Alsácia, até meados da década de 90. Um contacto estabelecido por Pedro Calheiro, docente da Universidade de Aveiro, fá-la reavivar esse período já esquecido.
Sensibilizada, aceitará o convite de se deslocar até à Veneza portuguesa, em 1995. Fruto dessa viagem, 84 obras, das quais pinturas a óleo, aguarelas e desenhos, serão doadas àquela instituição. O nome de Hélène de Beauvoir, a sua história e o seu património ficam assim, para sempre, associados a Aveiro e à sua Universidade.

Aveiro, juin 2013

Ana Bela Martins
Adelaide Morgado
Serviços de Biblioteca, Informação Documental e Museologia
Universidade de Aveiro (Portugal)

(I) In : Hélène de Beauvoir Souvenirs, página 156
(II) http://algarvehistoriacultura.blogspot.pt/2009/12/simone-de-beauvoir-no-algarve-um.html
(III) In: Afinidades, revista de cultura Luso-francesa 3, página 65
(IV) Hélène de Beauvoir Souvenirs, página 150
(V) http://www.alliancefr.pt/af/index.php?option=com_content&view=article&id=55&Itemid=105
(VI) In: “A escola de Paris no século XX” – Afinidades, revista de cultura Luso-francesa 1, página 43
(VII) In : Hélène de Beauvoir Souvenirs, página 154
(VIII) http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6527

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