Entrevista a Gaspar Albino

oMUA – “Aveirense de corpo e alma”. Define-se como tal?

GA – Nasci em Aveiro, na freguesia da Glória, no dia 21 de Agosto de 1938. Meu pai, “cagaréu” de gema, casou com a minha mãe, “ceboleira”; nesses tempos, o casamento de jovens da Beira Mar com jovens da Glória era mal aceite pelas respetivas comunidades. Mas o amor que uniu os meus pais falou mais alto. O meu pai andava ao mar: primeiro, pescador de dory nos mares da Terra Nova e da Gronelândia, onde naufragou; depois, já com o meu pai na marinha mercante, o casal foi viver para Lisboa, porto onde arribavam os barcos onde o meu pai andava embarcado. Com a minha mãe foram os meus dois irmãos mais novos para a capital. Eu permaneci em Aveiro, na freguesia da Glória, com a minha avó materna, que moldou os meus primeiros anos. Sempre que a minha mãe me levava para Lisboa, o meu desejo era regressar a Aveiro. Convivia, quase permanentemente, com a família da minha mãe, na Glória, e, aos fins-de-semana, com a família do meu pai, na Vera Cruz. Sou fruto dessa simbiose de meios muito diferentes, o que muito me enriqueceu como aveirense.

 MUA – Diz-me que praticamente não conviveu com o seu pai que andava quase permanentemente ao mar.

GA – Isso é verdade até aos meus nove anos. Depois, o meu pai sofreu um acidente grave à entrada do porto de Nova Iorque; a minha mãe e os meus irmãos regressaram a Aveiro, passando todos nós a viver em casa da minha avó materna. O meu pai ficou internado no Manhattan State Hospital de Nova Iorque, regressando a Aveiro quando eu já estava a completar o Curso Geral do Comércio, na extinta Escola Industrial e Comercial de Aveiro. O meu pai foi internado num hospital em Coimbra e nunca mais teve saúde até à sua morte, muitos anos mais tarde. A família da minha mãe ajudou tanto quanto podia. Mas a minha mãe foi uma verdadeira heroína, apesar do apoio dos seus irmãos e da matriarca sua mãe. Foram tempos muito difíceis esses. Minha mãe começou a trabalhar a dias, como costureira. E eu fui aprendiz de carpinteiro; endireitei pregos num armazém de louça; fiz, para esse armazém, suspensões para pratos de parede; dei explicações. Fiz tudo o que era possível para ajudar no sustento da casa. E conseguimos! Quando estava a receber o prémio de melhor aluno do meu curso comercial, o presidente do então Grémio do Comércio de Aveiro perguntou-me se eu queria ir trabalhar para a sua empresa de pesca. Disse logo que sim. Para além do meu trabalho, fui sempre estudando e dando explicações de contabilidade, cálculo comercial e inglês. Logo que a lei me permitiu matricular-me como estudante-trabalhador, fiz, em dois anos seguidos os sete anos do liceu. Aos 19 anos, matriculei-me na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, como voluntário. E um dia, com os meus 21 anos, vi-me gerente com delegação de plenos poderes na empresa de pesca onde começara a trabalhar. Mais tarde passei a sócio. Mas o mais significativo, o mais enriquecedor, foi o convívio com aquela gente do mar, com camaradas iguais ao meu pai. Eu era o senhor Antoninho, filho do Manuel de Aveiro. Eu respeitava-os e era respeitado. A partilha de experiência com cada pescador, a saga do bacalhau desde a armação do navio até à sua descarga. Depois, os trabalhos de secagem do peixe. O mar passou a ser o companheiro dos meus dias e de muitas noites sem dormir, e as suas gentes, modelos de vida que eu ansiava por retratar. A divisa que eu escolhi para a empresa que dirigia era mesmo a tradução da minha vida: “em terra se pensa no mar…”.

 MUA – Quando iniciou o seu percurso artístico?

GA – Eu não me vejo dentro de um formato. Sempre me lembro de desenhar e tudo me servia para levar ao papel o que ia vendo e vivendo. Quando eu frequentava o Curso Geral de Comercio, sempre que possível saltava para os cursos da Indústria onde os professores e mestres me deixavam assistir a aulas de modelação e de pintura! Havia uns Salões de Educação Estética a que eu concorria sempre. Davam prémios pecuniários que muito ajudavam à difícil economia doméstica. Um dia, em 1955, vi um anúncio de um concurso mundial de desenho num exemplar da revista Collier´s que o meu amigo André costumava emprestar-me. Era promovido pela Art Instruction School e o prémio era o direito a frequentar um curso de arte comercial. Fui um dos três vencedores. Comecei a dirigir graficamente o semanário da Diocese de Aveiro. Fazia capas para livros, ilustrava poesia, sei lá…

Com 23 anos realizei a minha primeira exposição. Foi no Teatro Aveirense. Recordo-me de ter vendido os quadros todos em dois dias e com o dinheiro obtido, comprei o meu primeiro carro (riso). Foi muito engraçado pois todos os dias aparecia com aguarelas novas na exposição! E vendi-as todas.

 MUA – Pensa ter herdado essa veia artística de alguém em particular?

GA – Pode dizer-se que sim. Quer do lado paterno mas, sobretudo, do lado materno. O meu avô António, pai de minha mãe, desenhava e esculpia muito bem. Fazia esculturas para túmulos. Lembro-me dos seus estudos guardados no seu estirador que a minha avó guardava nos arrumos do sótão. Com os meus sete anos, era ver-me nesse sótão a explorar os seus desenhos e plantas. Ficava fascinado! Gostava de desenhar, é um facto. Tive também a sorte de ter muito bons professores de desenho no meu Ciclo Preparatório: os pintores Júlio Sobreiro, Porfírio Abreu e o escultor Mário Truta. Os meus tios maternos, Alpoim e Coríntio, também eram muito bons a desenhar. A minha mãe confessou-me, muitas vezes, que teria gostado de frequentar um curso de Belas Artes. O que sei é que ela talhava as roupas que fazia com uma enorme destreza.

 MUA – Na exposição “4 fundadores expõem” apresenta várias figuras de pescadores. A arte do povo, pelo povo e para o povo faz de si um artista neo-realista?

GA – Nunca gostei de rótulos. Mas uma coisa eu sei: a minha vida de trabalho reflete-se plasticamente nas minhas telas.

 MUA – Deixa visível as linhas mestras que estruturam os seus trabalhos. Considera-se mais desenhador do que pintor?

GA – Sempre desenhei. Até porque os materiais para pintar eram caros e para desenhar é preciso pouca coisa. Como já referi, tive muito bons professores. A pintura veio depois do desenho. Tenho quilómetros de museus vistos palmo a palmo. Sempre admirei Van Gogh, Matisse, Chagal, Picasso, Dali. Jackson Pollock. Dos portugueses: Júlio Pomar, Júlio Resende, TOM, Almada Negreiros, Paula Rego, Graça Morais. Fui sempre, acima de tudo, um autodidata. Houve, contudo, um amigo que me modelou, que me ajudou a saber pensar e a quem devo o entusiasmo que me levou a ser quem sou. Esse grande amigo e meu arquétipo, um aveirense que morreu com apenas 33 anos, foi André Ala dos Reis. Infelizmente o seu pouco tempo de vida foi-lhe padrasto. É que ele foi um poeta inspirado e um desenhador extraordinário. Há que divulgá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para o fazer.

 MUA – Hoje há quem o veja como artista plástico…

GA – Na realidade gostaria de ter tido mais tempo para desbravar caminhos que sonhei e com que sonho. Gostaria de ter concluído o meu curso de Direito, mas a minha absorvente vida profissional, com deslocações constantes ao estrangeiro, não mo permitiu. O meu desejo será, agora que estou reformado, o de poder continuar a fazer o que mais gosto: escrever, desenhar e pintar de forma consequente. Gostaria que me recordassem como um pintor que entreabriu algumas portas, apesar de não ter tido tempo para as abrir como gostaria.

1 Response to Entrevista a Gaspar Albino

  1. Francisco Carvalho Domingues diz:

    O meu Amigo Joaquim António Gaspar de Melo Albino desde hoje mesmo à terra.
    Poder-se-á afirmar que, de alguma forma, foi de vez que se afastou do Mar.
    Do Mar que embalou o dori onde seu Pai Manuel depositava o peixe que lhe retirava, do Mar em que pensava quando, em terra, geria a actividade da Empresa onde jovem se iniciou em funções de gestão.
    Mas não, não se afastou do mar.
    É sabido que o solo de Aveiro, a pouco mais de 4 ou 5 metros de escavação, logo demonstra que tem alto teor de água, da Ria / Mar que lhe compõe as margens.
    Por isso sei que o Gaspar Albino poderá continuar a sentir-se envolvido por aquelas águas que, qual líquido amniótico, lhe formaram mais do que o corpo, mas principalmente a sua sensibilidade para a Arte, para a Cultura, para a Solidariedade e para a Amizade.
    Que descanse em Paz.

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